Eu sei

Por Hiran de Melo

Eu sei —
sei que querias me ofertar o teu inteiro, o teu carinho sem medida, o teu coração sem reservas.
Mas o mundo te exige em partes. Te fragmenta. Te convoca a dividir o tempo, a atenção, o gesto.
E eu sei que o pouco que me dás é, na verdade, imenso.
Porque pouco tens, e mesmo assim, me dás.
E eu, que nem sempre mereço, recebo.
Recebo porque és generosa, porque és mais do que o mundo te permite ser.

Eu sei —
sei que deveria seguir teu exemplo.
Dar mais do que tenho dado.
Dar atenção, dar zelo, dar presença.
Mas há em mim amarras que me prendem.
E há em ti também correntes invisíveis.
Algumas parecem ficção, tão frágeis aos olhos de quem vive na abundância da liberdade.
Mas nós sabemos: o que prende não é sempre visível.
O que limita não é sempre nomeável.

Eu sei —
sei que gostaria de te amar à luz do dia, sem esconderijos.
Mostrar-te ao mundo como minha companheira, minha amiga, minha porção de água-viva.
Mas há em mim um medo antigo, um medo que nasceu comigo.
E vejo nos teus olhos que também tens medo.
Mesmo assim, és mais corajosa do que eu.
Mais inteira no teu ser, mais firme no teu estar.

Eu sei —
sei que há em mim vontades que não compreendo, desejos que não nomeio, medos que não confesso.
E sei que há em ti silêncios que gritam, gestos que falam mais do que qualquer palavra.
O querer nem sempre se traduz no poder.
E o poder nem sempre se realiza no fazer.
Fazer exige coragem.
Exige tempo.
Exige espaço.
E às vezes, exige que sejamos outros — ou que deixemos de ser.

Eu sei —
sei que há dias em que não sou inteiro.
Noites em que me desfaço em lembranças, saudades, esperas.
E sei que há em ti uma força que me sustenta, mesmo quando estás ausente.
O não fazer também é escolha.
Também é gesto.
Também é grito.
E o não dizer — ah, o não dizer — às vezes protege, às vezes fere, às vezes salva.

Eu sei —
sei que somos feitos de tentativas, de tropeços, de recomeços.
Que o amor não é só presença.
É também ausência que pulsa, que ecoa, que insiste.
Há em nós uma dança entre o querer e o poder, entre o ser e o dever, entre o sonho e o chão.
E mesmo sem saber, seguimos.
Cada um com suas cicatrizes, seus abismos, seus lampejos de luz.

Eu sei —
sei que te amo, mesmo quando não sei como.
Sei que me amas, mesmo quando não podes.
E sei que, apesar de tudo, há em nós um pacto silencioso: o de continuar.
Mesmo que seja só com o olhar, com o pensamento, com a memória.
Porque o ser ama, mesmo quando o mundo não permite.
Porque o ser é, mesmo quando o tempo o desvia.
Porque o ser, no fundo, é sempre espera.

Testemunho do autor

O poema “Eu sei” nasceu como um gesto íntimo — uma tentativa de nomear o indizível, de tocar o que escapa. Ao escrevê-lo, não busquei respostas, mas reconhecimento: reconhecer que amar é, muitas vezes, lidar com fragmentos, com ausências, com silêncios que gritam mais alto que palavras. Há em mim, como há em tantos, esse desejo de ofertar o inteiro, mesmo sabendo que o mundo nos exige em partes.

A repetição do “Eu sei — sei que…” não é apenas estilo: é confissão. É a voz dividida entre o que acredita saber e o que, no fundo, permanece incerto. Essa duplicidade é o que me move — o saber que não basta, o querer que não se realiza, o medo que acompanha desde sempre. Escrevi sobre amarras invisíveis porque as conheço bem. Elas não têm nome, mas moldam gestos, evitam encontros, sustentam silêncios.

A linguagem do poema é feita de gestos mínimos, de presenças que se ausentam e ausências que sustentam. Um carinho breve, uma lembrança persistente, um olhar que permanece — tudo isso é amor, mesmo quando não se pode dizer. O presente, por menor que seja, carrega o peso do desejo. E o silêncio, esse espaço ambíguo, é onde o laço se mantém: às vezes como proteção, às vezes como ferida, às vezes como salvação.

Jacques Lacan aparece aqui de maneira oculta, mas sua teoria atravessa o texto como quem sussurra por dentro. O sujeito dividido, o desejo do Outro, o Real que não se simboliza — tudo isso está ali, entre as linhas, entre os gestos, entre os medos. O poema não pretende explicar, apenas expor: mostrar que amar é também esperar, mesmo sem garantias, mesmo sem plenitude.

No fundo, “Eu sei” é sobre isso: sobre continuar. Continuar mesmo quando não se sabe como, mesmo quando não se pode. Porque há pactos que não precisam de palavras. Há vínculos que sobrevivem ao tempo, à ausência, ao não-dito. E há em nós, sempre, uma dança entre o possível e o impossível — entre o que somos e o que ainda tentamos ser.

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